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    A moda está colorindo a violência
    A moda está colorindo a violência
    POR Redação

    Por Olivia Merquior, especial para o FFW75a9322-1-1024x1365

    Soft Criminals / Foto de Kristin-Lee Moolman e styling de Ib Kamara

    Ao terminar a temporada de moda internacional, com os desfiles de Paris, algo terrível me veio a cabeça: “estamos colorindo a violência”. Seria possível que, no ímpeto de naturalizar um cotidiano afogado em brutalidade e decepção, o caminho mais interessante do mercado fosse colorir com Pantones irresistíveis a perversão humana?

    Em setembro de 2018 eu estava de volta à Paris para mais uma semana de moda. Fazia calor, os dias estavam ensolarados e nas ruas havia um clima alegre de boemia. No último dia de viagem, já aguardando o momento de ir ao aeroporto, decidi tomar uma taça de vinho no Marais. Os bares estavam cheios e o ar se inundava de risadas largas, quando de repente adentra na multidão um grupo de duas mulheres e seis homens, com roupas camufladas e fortemente armados. Os Vigipirate, como é conhecido o grupo especial de segurança nacional contra ataques terroristas, destoava em cores e acessórios das turmas dos bares, mas, o que mais me impressionou foi que a procura das metralhadoras por passagem entre os copos de drinks, não parecia causar estranheza em ninguém. Os artefatos de guerra foram incorporados na paisagem, não mais surpreendiam, não eram corpos estranhos ou ameaçadores. Ali em Paris se tornavam, talvez, interessantes inspirações estéticas.

    A caminho do aeroporto fui colocando a leitura em dia. Na Vogue UK havia uma matéria sobre o trabalho de Ibrahim Kamara que lançava naquele mês uma exposição em Nova York chamada Soft Criminals junto com a fotógrafa Kristin-Lee Moolman e o designer Gareth Wrighton. Kamara e Moolman eram indicados pela revista como nomes para “prestar atenção” e no mesmo período, o Business of Fashion elencou Ib Kamara como um dos 500 mais influentes do mundo da moda global. Não era a primeira vez que eu ouvia o nome dele, a descoberta foi através de um residente do Projeto Órbita – no Centro-br – com aptidões para styling. Ib era a grande inspiração de Rômulo. Rômulo, morador do subúrbio do Rio de Janeiro, via em seu trabalho um entendimento sobre um dia-a-dia imerso em metralhadoras e Instagrams. Ib Kamara nasceu em Serra Leoa, Rômulo, à época, morava em Ramos.

    Soft Criminals / Reprodução

    Soft Criminals / Reprodução

    O trabalho de Kamara, Moolman e Wrighton impressiona pela franqueza. Não existe nos três criadores qualquer constrangimento em misturar suas sofisticadas referências estéticas – lapidadas pelos anos de estudo na Central Saint Martins de Londres – com o armamento pesado presente no dia-a-dia das suas origens africanas. Serra Leoa e Mali, dois dos países mais violentos do continente fazem parte da infância de Kamara e seguem como forte influência. Não estranho, por sua vez, que um jovem com sensibilidade estética para a moda e morador da periferia do Rio de Janeiro tenha encontrado nas imagens produzidas pelo trio, ressonância direta. A arma como fetiche de poder, como objeto corriqueiro, como artefato de moda, obviamente não reluz nenhuma novidade nas páginas dos jornais nem nas periferias do mundo, mas quando essas passam a ser incorporadas pelo mainstream, segue-se um novo capítulo para reflexão.

    Saí de Paris pensando nas imagens dos Vigipirate no Marais, nas fotos do Soft Criminals e com a suspeita de que algo se inclinava para construir um novo discurso para a violência que, pouco a pouco, se instaura não apenas nas armas e nas fardas, mas dentro de nós. Foi então, apenas em janeiro, na nova semana de moda masculina, que a minha suspeita se tornou evidência. Jun Takahashi, dono e diretor criativo da marca japonesa Undercover, apresentou uma coleção onde cassetetes sedutores coloridos combinavam com sinistras máscaras de penas e estampas com olhos arregalados e sorrisos perversos. A coleção fora inspirada no filme de Stanley Kubrick, Laranja Mecânica, que em 1971 trouxe às plateias um enredo onde cidadãos dotados de extrema cultura e sofisticação estética passavam a orquestrar cenas de ultraviolência como resultado de um estado de alto controle psicológico. No roteiro de Kubrick, quanto mais a sociedade se percebia vigiada e controlada, mais os instintos sádicos emergiam. O desfile de Takahashi, no momento que chegou à tela do meu celular, me arrebatou pela beleza e pela sensibilidade, mas junto ao trabalho de Kamara, Moolman e Wrighton, me fez reconhecer de forma clara aquilo que eu já tentara materializar em palavras desde setembro passado: estamos partindo de um estado de manifestações pela diversidade, inclusão e busca da liberdade, para um estranho momento de culto aos monstros que habitam dentro de nós. Como descrito no release do desfile, o momento do “show de horrores”._fio0049

    desfile da undercover inverno 20 inspirado no filme Laranja Mecanica de Kubrick / foto: reprodução

    O desfile da Undercover em janeiro apontava o início de uma semana que se estenderia até março, ao longo dela, as coleções foram alternando entre distopias sombrias, inspirações 70 e 80, busca pela teatralização “versalhenesca”, a volta da tradição e elegância perdida, a selvageria digital…até a Gucci. No desfile, Alessandro Michele trazia sua assinatura inconfundível, no entanto, em vez do clima lúdico de outrora, houve um desvio para o fetiche, com máscaras coloridas ora adornadas com longos espetos de metal, ora lisas, anônimas, sinistras. Os espetos de cinco centímetros ainda aparecem nos pescoços e suspensórios e sugerem um alerta para ninguém se aproximar; eles inviabilizam o abraço, o afeto e mais do que proteger, atacam. Apesar dos acessórios agressivos, os modelos entram luxuosamente vestidos, estruturados, de ombros largos, tecidos sofisticados e uma cartela colorida, diria, divertida, numa mistura de elegância, pop e perversão perfeita para o figurino de um remake atual de Laranja Mecânica. (Um detalhe sobre a presença do tema da violência na Itália da Gucci merece menção. Durante a semana de moda italiana, a Fundação Prada de Milão exibia uma grande exposição chamada “Sanguine”. O título fazia referência tanto ao nome da cor vermelho-sangue, quanto aos atos violentos e temperamentos vigorosos na pintura barroca. A curadoria de Luc Tuymans juntou uma centena de obras que tratam desde a morte, às guerras sanguinárias até às atrocidades passíveis da imaginação humana).arm_0718

    máscara e harness de lanças da gucci / foto: cortesia

    Marine Serre, uma das mais novas estilistas da semana de moda parisiense, por fim, contribuiu para pensarmos o tema da violência e as suas causas. Ela explica no release de sua coleção: “Eu estou tentando encontrar uma nova crença. E para ter algo novo para acreditar, precisamos nos manter fortes”. Em sua coleção, máscaras de gás, rostos e corpos velados, vestidos acolchoados (protetores anti-impacto) e bolsas redondas, duras, convenientes para um eventual ataque. O desfile de Serre foi em um subsolo, em uma atmosfera de bunker de guerra que ela explicou como sendo “uma zona segura onde um novo mundo está sendo criado”.

    O tom de confronto de Marine é justificável pela onda repressora mundial que vem assolando as igualdades coletivas e liberdades individuais, no entanto, o que precisa-se manter atento é como o status-quo irá incorporar a estética dos discursos libertários aos interesses do mercado.

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    marine serre inverno 20 / foto: cortesia

    Em fevereiro deste ano eu estava de volta à Paris. No aeroporto, televisores por todo o lado informavam o estado de alerta anti-terrorista que a cidade se encontrava e pedia cooperação caso houvesse abordagem dos Vigipirate. Os uniformes camuflados, as metralhadoras, os rádios de comunicação, as bombas de gás estavam na saída do desembarque para um desconfortável “boas-vindas”. Nesse momento pensei, não vai demorar muito para a indústria militar e a política armamentícia descobrir os encantos do design de moda. Se aqueles uniformes variassem as estampas para algo mais moderno, se aquelas armas se colorissem com os Pantones da estação, se os cassetetes exibissem a logo das principais marcas, tudo seria mais palatável e talvez numa próxima excursão ao Marais, os Vigipirate não passariam mais despercebidos, causariam surpresa, despertariam interesse, virariam desejo de consumo de luxo.

    Em A Era dos Extremos (1994), o sociólogo Eric Hobsbawn já citava seu espanto quanto ao fato de alguns criadores de moda serem capazes de prever mudanças sociais importantes, antes mesmos que os mais premiados acadêmicos – esse seria “o poder profético da moda”. De maneira consciente ou não, mas certamente atuando como sensíveis antenas de movimentações latentes em nosso mundo, algo tem sido deixado no ar por desfiles e editoriais menos comentados pela grande mídia, mas que trazem à tona elementos complexos para compreendermos o que nos espera em um futuro que caminha para a sofisticação dos meios de comunicação ao mesmo tempo que propõe sociedades cada dia mais vigiadas e militarizadas em nome da segurança e do mercado do entretenimento.

    *Os artigos assinados são de exclusiva responsabilidade dos autores e não refletem a opinião deste site.

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