Ouvindo Sterac (“Asphyx”), Galaxy 2 Galaxy (“Hi-Tech Jazz”), Jam & Spoon (“Odyssey to Anyoona”), Orbital (“Halcyon On and On”), Housemaster Boyz (“House Nation”) e Marmion (“Schoenenberg”), eu escrevo esse post, o mais pessoal que já escrevi aqui.
O motivo é uma festa que acontece na próxima quinta, dia 9 de junho, em São Paulo, que resgata o lendário Hell’s Club, o primeiro after hours do Brasil, que funcionou de 1994 a 1998 e virou um cult da noite paulistana, semeando um caminho para tudo o que veio depois, com o auge da boa música eletrônica e o surgimento dos top DJs no Brasil.
Muita gente hoje apenas ouviu falar ou nem tem ideia de que isso veio antes e, aproveitando o gancho da festa, vou contar um pouco como era, pois, sem dúvida, como tudo o que é novo de verdade, foi a era dourada da cena noturna aqui. Tenho certeza que você vai acabar a leitura animado pra ir também.
O Hell’s marcou seu tempo justamente porque era um movimento nascendo, uma cena tomando forma e que impactaria, inicialmente, um grupo pequeno, para depois ganhar as páginas dos jornais e revistas e virar febre e então, virar uma história.
E essa história era assim: para toda a cena clubbing que a gente via nas páginas da “The Face”, fazíamos aqui nossa própria versão.
Tudo começou quando Pil Marques, que então fazia umas festas em São Paulo, teve a ideia de fazer o Hell’s, ideia que foi comprada por Angelo Leuzzi, dono do Columbia.
A noite, semanal, começava às 4h de sábado pra domingo bem na esquina da Augusta com a Estados Unidos e ao lado de uma delegacia de polícia. Algumas vezes, colocávamos o despertador pras 3h ou então, nos encontrávamos à noite na casa de algum amigo e lá a gente se montava com casacos de pelúcia, jaquetas de plástico, vestidos de couro, roupas da Escola de Divinos, chifrinhos de diabo, botas enormes, adesivos refletores e luzes pelo corpo (né Marco Antonio Rangel?).
Antes do Hell’s começar, no mesmo espaço acontecia o Sub Club, noite black incrível capitaneada por Eugenio Lima. O SC acabava, as pessoas saíam, a pista era varrida e a porta abria novamente. Era uma troca de público muito engraçada.
Na porta éramos recebidos pela dupla absurda Ana e Roberta, que rendia sempre alguns dos visuais mais fortes da noite, com suas tattoos, piercings, cabelos coloridos e rostos pintados.
O Hell’s era um porão com um palco, onde a gente dançava e sentava pra descansar quando não tinha show, como o do Habitants, trio de música eletrônica que se apresentava live. Quem comandava o som, era o Mau Mau, DJ residente que, a cada after, recebia convidados pra dividir o som. Da cabine lá em cima, ele ouvia o público enlouquecendo com seu set e gritando: “Vai, Mau!”. Não tem nem o que falar da música, era uma experiência sensorial – que eu tenho certeza que muitos de vocês conhecem. Gil Barbara, Renato Lopes, Renato Cohen, Pareto, Camilo Rocha, Marky tocavam com uma liberdade que os permitiam ir do hard tecno aos momentos de puro deleite melódico, como “Halcyon On and On”, do Orbital, ou “Pearls”, da Sade, um dos instantes que ficou para a memória. Às vezes Mau Mau jogava um Sigue Sigue Sputink ou Pink Industry. Era sempre uma surpresa e, assim, causando momentos na pista, os DJs tinham o público em suas mãos, noite após noite.
Foi lá também o início da vinda dos grandes DJs gringos ao Brasil. O francês Laurent Garnier, um dos principais nomes da época, veio em um esforço coletivo. Pil Marques e Mau Mau fizeram o contato todo, Angelo Leuzzi pagou a passagem, eu consegui que ele comesse de graça no restaurante dos meus pais e ficava de motorista dele junto com o DJ Guilherme M. As noites que ele tocou no Hell’s e no Latino são daquelas quem foi, foi.
Estilistas, drags, modelos, artistas, tatuadores, músicos, DJs, jornalistas, estudantes e figuras da noite se misturavam na pista, criando uma salada de cabelos coloridos, dreads, tatuagens, piercings, perucas, plataformas, vinil, couro, plástico, paetê… E muita pele à mostra.
A chapelaria e o banheiro eram como salas de estar, onde a gente descansava da pista, conversava e dava muita risada com Normanda, Minhoca e Leia Bastos, que eram as donas do lugar.
E como não lembrar das “Pocahontas” Adriana Recchi e Flavinha Ceccato dançando no palco. Elas ganharam esse nome por causa dos longos cabelos pretos que balançavam com seus movimentos. As Pocas inspiraram como as meninas iriam se vestir para a noite, com tops de biquíni e calcinhas mais largas, microssaias – mas micro mesmo –, shorts e botas de cano alto, sempre com um perfume fetichista e provocador no look.
O lema que a gente usava era “don’t forget your sunglasses”, nossa hashtag da época, porque saíamos de lá 11 da manhã, do porão escuro e louco para um lindo domingo familiar nos Jardins. Para muitos, aquilo não passava de uma festa estranha com gente esquisita. Enquanto isso, do alto das nossas plataformas e do barato das nossas coreografias, a gente se achava o máximo. Muito do que acontecia lá era divulgado na coluna Noite Ilustrada, da Erika Palomino, com as fotos incríveis da Claudia Guimarães, e no fanzine Subscience.
A ideia era visionária e deu certo porque encontrou seu grupo de jovens apaixonados que entenderam e abraçaram a proposta. Em um determinado momento, a gente sentia como se o Hell’s fosse nosso. Nas colunas da Erika, éramos a Nação Hell’s. A gente tinha mochila do Hell’s, camiseta, adesivo e uma carteirinha de “sócio”, rsrs.
O Hell’s foi um lugar que reuniu muita gente e causou muitos encontros. Era um ambiente que estimulava todos os nossos sentidos. Era ingênuo, sonhador, livre. Ninguém julgava, todo mundo só celebrava. Foi o nosso summer of love, mas que, por sorte, durou mais que um verão.
Quero agradecer Gaia Passareli e Claudia Guimarães por gentilmente ceder suas fotos pra essa matéria, um verdadeiro documento de uma geração.
#tchautchau #dontforgetyoursunglasses
Absolut Nights feat. Hell’s
Data: 09.06 (quinta), a partir das 22h
Local: rua Cardeal Arcoverde, 2926, Pinheiros
Atenção: As inscrições para o público serão abertas no dia 6 de junho na página oficial de cada evento criada no Facebook. As vagas são limitadas e dão direito a um acompanhante.
Veja na galeria mais fotos do arquivo de Claudia Guimarães: