Por Gaia Prado, da agência de pesquisa de tendências Peclers Paris
Nosso resumo da semana de moda mais importante do país chega após uma pausa reflexiva, que nos ajuda a ganhar perspectiva. Em tempo, o que dizer sobre um evento já tão discutido como esta edição?
Na SPFW46, o tema “Transposição” traz o desafio ao público de ir além de suas convicções. A guinada de direção do país e do evento foram bem representados pela mudança de local, das instalações gerais e da energia engata pelos estilistas que desfilaram no Projeto Estufa.
O conteúdo do evento criado pelas marcas participantes, tornou-se inegavelmente político em meio às eleições mais polêmicas do país. Política certamente não é novidade no mundo da moda: mesmo as últimas edições do próprio SPFW já traziam retratos de refugiados, reparações étnicas, ressocialização de detentos…. Dizer que a moda apenas nesta estação foi política, seria desmerecer seus esforços anteriores e até históricos.
Fato é que, pensando a longo prazo, marcas passam a trazer questões essenciais para o centro de seu processo criativo, entendendo sua responsabilidade em projetar propósitos maiores, de transformação global. A politização é um reflexo da tentativa de construir e promover o bem de alguma forma. Com base neste panorama, recortamos em alguns temas as principais tendências que compõe este complexo momento, para entender as mensagens implícitas e explícitas, que consideramos mais relevantes na estação.
ÉTICO DE DENTRO PARA FORA
Numa nova consciência holística, materiais e processos ganham protagonismo. De onde vem, como é feito, por quem é feito? Movimentos de moda sustentável, justa e ecológica vem crescendo em importância e ganham espaço em todas as esferas da moda. A execução das peças torna-se um statement tão importante quanto a narrativa de cada coleção.
No desfile de João Pimenta feminino, a parceria com a Sou de Algodão torna a matéria-prima produzida pela ONG o tema central. Sem sequer o uso de aviamentos, os deslumbrantes looks trazem opções criativas de fechos, acabamentos e tecidos de algodão sustentável, como o couro vegano biodegradável. O mesmo acontece no desfile da Aluf, marca fresquinha vinda da Eco Fashion Week que trabalha com materiais ecológicos, sustentáveis ou reciclados, buscando inclusive pigmentos naturais para tintura. A preocupação com os meios de extração, produção e descarte, e a preservação da natureza continua sendo tema da gigante Osklen, que mantém a iniciativa ASAP (as sustainable as possible) e agora alerta para o cuidado com os oceanos, em cartazes que formam a passarela e em estampas com a temática inspiracional do pescador.
Meninas fazendo trabalho manual na passarela da Patricia Viera / Agência Fotosite
A necessidade de transparência da cadeia produtiva traz a importância de valorizar o capital humano e é reforçada através de iniciativas como a de Patrícia Viera de incluir, durante o desfile, bordadeiras desenvolvendo peças ao vivo, ou o cenário manualmente bordado da Patbo.
O SIGNIFICADO DA COR
Somos conhecidos pela exuberância da flora tropical, a miscigenação de raças, o carnaval. Um olhar mais aprofundado para a estética vem nos fazendo examinar nossa relação com este elemento tão importante no imaginário visual do país. Isso traz reflexões com o tema “Descarrego da Cor”, que de maneira muito simbólica transmite a mensagem da marca Beira, numa coleção sobre leveza e poética, em tons e tecidos suaves. A Apartamento 03 traz uma grande provocação quando usa o elemento da cor associada às peças de roupas, mas também sugestivamente apresenta modelos majoritariamente afrodescendentes. Esta mesma opção para o casting aparece em diversos outros desfiles – o tom escuro da pele de milhões de brasileiros é finalmente enaltecido, numa tentativa de mostrar “apreciação cultural” de nossa etnia ancestral mais abundante.
NARRATIVA ATIVISTA
Ideias mais diretamente ligadas ao ativismo político se manifestam em diversas coleções. Ronaldo Fraga une judeus e palestinos, jovens e velhos, lgbts e todo o público ao redor de uma mesa de banquete, e entre beijos e brindes, clama por um mundo com mais tolerância. A Cotton Project, traz o conceito do hiper-realismo, questionando a manipulação das massas por regimes autoritários; a Handred, em seu posicionamento sempre sem gênero, por usa vez, utiliza em sua trilha sonora apenas notórias músicas brasileiras de protesto enquanto sua passarela parece um raio de luz para modelos etéreos.
SOBREVIVÊNCIA
O estado de alerta em que nos encontramos em relação à natureza, a política, a impasses e crises mundiais se manifesta sutil ou fortemente, principalmente em coleções (muitas masculinas), com estéticas utilitárias que por vezes flertam com o militar. Vimos a coleção da Mipinta desenhar trajes inspirados na aviação, que escondiam e revelavam recortes inspirados em paraquedas e a Korshi apresentar roupas multifuncionais que se transformam em 7 peças diferentes. A Piet mistura materiais tecnológicos e temática outdoor para quebrar visuais clássico de costumes com um toque funcional – e no final do desfile, apresentou todos os looks sobrepostos por coletes cor de laranja, que sinalizam trajes de resgate. A mensagem que lemos aqui é de resistir através de recursos e da tecnologia para evitar condições adversas das transformações do ambiente e também as socialmente impostas.
GLAMOUR RESISTÊNCIA
O termo cunhado por Luigi Torre num artigo para a UDesign em 2017 vem ganhando nosso vocabulário: ele diz respeito à usar a extravagância como forma de militância, fugindo do banal. A estreante Cacete Company propõe um approach deste tema num universo mais carioca street, sexualizado e hiper-provocante. Já Victor Hugo Mattos atinge este resultado com brilho, bordados over-elaborados de conchas e pedras em acessórios e peças nada discretas, além de sinais que remetem ao sincretismo brasileiro: deidades. É através deste mesmo approach que a coleção masculina de João Pimenta apresenta as raízes culturais brasileiras, num mix de referências à ícones religiosos, muito brilho e uma combinação exuberante de cores, materiais e estilos que o estilista domina tão bem.
REBELDIA WESTERN
Numa versão brasileira do western, as botas de cowboy, o couro e as franjas aparecem em diversas passarelas da estação, desde um haras com quê distópico no desfile da Ratier, da super comercial e direta coleção da Bobstore, até de formas mais misturadas, em coleções como a da Modem, num potpourri criativo e harmônico de referências. O que transparece pelas entrelinhas desta referência, talvez um pouco mais contida que nas demais manifestações políticas, olhando um pouco pra fora dos centros urbanos, uma resistência à “streetwearização” da moda, com questões como o que o cowboy americano representa no imaginário mundial – um tipo de liberdade e rebeldia mais clássica.
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A esperança é que, de bloco em bloco, possamos construir um futuro melhor. Seja na política, no indivíduo ou na moda, nada vai se resolver só na raiz ou na superfície: devemos reconstruir aos poucos tudo o que culminou nos problemas atuais em relação a cadeia, lógica, produto e narrativa. E é importante lembrar que os desfechos destas tendências não acabam na apresentação das coleções, mas no comportamento futuro de quem vai consumi-las.
Este espaço no Blog é dedicado à colaborações de convidados do FFW e os artigos assinados são de exclusiva responsabilidade dos autores e não necessariamente refletem a opinião do site.