Tem uma turma causando e acontecendo no Pará. Vivendo sob influência da Amazônia, um grupo de amigos se juntou como forma de se expressar em um cenário adverso. Eles vêm de pequenas cidades ou ilhas periféricas de Belém, banhados pela natureza abundante da Amazônia, que hoje está no centro de uma batalha política global. Mas da escassez e do caos, surgem também uma criatividade regional, autêntica e verdadeira que acompanha o modo de vida dessa turma que se vira de tudo que é jeito pra colocar seu trabalho artístico na rua.
Ao reafirmar sua identidade nortista, esse grupo formado por jovens artistas como Labo Young, F1er6e, Jean Petra, Akhacio, Sushi de Sereia e Bixa do Mato, derruba as barreiras e fronteiras criadas em torno de capitais como São Paulo e Rio, e chegam como um vento quente que vem do Norte.
Em 2018, eles apareceram no curta “A Queda do Céu: Aquilo que os Jovens Chamam de Música”, de Fernando Nogari. O curta foi exibido na loja Void (com produção de Pedro Perdigão) e foi parar até no Nowness. Em abril desse ano, a Void lançou uma coleção inspirada pelo filme e assinada pelo Lucas Mariano (aka @sushidesereia).
2018 foi um ano importante pra essa turma, que começou a fazer o circuito Belém – Rio e a partir daí, através das redes, começaram a aparecer também fora do país. Foi assim que Ib Kamara, stylist do momento, achou Labo Young e suas inacreditáveis roupas de folhas e casca de árvores. Ib veio ao Brasil, foi a Belém e, reconhecendo imediatamente um potencial ali, colocou as criações de Labo na capa e nas páginas da revista do jornal francês Le Monde.
Apesar de cada um ter seu próprio trabalho, eles fazem muita coisa juntos. Aliás, eles fazem muita coisa de uma maneira geral. Perguntas como “qual é a sua profissão?” não funciona aqui porque eles são super pró-ativos e se arriscam em várias funções. Enquanto um fotografa, o outro fica de modelo, um inventa roupas e depois invertem os papeis. Eles filmam, fotografam, atuam, modelam, pintam, desenham, tocam como DJ.
Na véspera do Círio de Nazaré, tradicional manifestação religiosa que toma Belém, muitos estão bem atarefados. Então nós conversamos com eles de todas as maneiras possíveis: telefone, DM de Instagram, áudio de whatsapp, email…
Abaixo, conheça mais sobre cada um desses personagens que estão criando uma nova cena jovem, cultural e de moda, uma verdadeira rede criativa em que o sucesso de um é o sucesso do outro e o lema “ninguém solta a mão de ninguém” é levado muito a sério.
Para acompanhar a sua leitura, dê um play em um set de Jean aqui.
Labo young
Idade: 24
Onde vive: Icoaraci
Fez faculdade: Não, nunca fiz.
O que você faz?
Trabalho com artes visuais não faz muito tempo. Já participei de curtas, como Queda do Céu, do Fernando Nogari, e Não existe pecado ao sul do Equador, do Igor Furtado, todos gravados em Belém. Também trabalhei na capa do álbum de uma cantora paraense chamada Nazaré Pereira e criei visuais para o clipe mais recente da Gaby Amarantos. Esses trabalhos são muito importantes pra mim porque rola essa troca entre artistas do Norte.
Você cria essas peças incríveis de folhas, cascas de árvores, tem puro domínio sobre esses materiais da natureza. Você aprendeu sozinho? O que te inspirou ou o levou a fazer isso?
Acho que é um instinto ancestral mesmo. Minha mãe é Marajoara e sempre tivemos uma conexão muito forte com o rio, a ilha, a floresta. E muitas coisas aprendi com ela. A nossa própria vivência enquanto pessoas amazônicas também é uma influência forte.
Quando você começou a criar esses objetos vestíveis de natureza que vemos no seu Insta?
Em 2015, quando comecei a levar a sério no sentido de acreditar em mim de verdade. Sempre chamava uns amigos em casa, fazíamos mil coisas juntos, imagens, looks que eu inventava… Até hoje é assim. Todos eles são muito talentosos.
Como foi o encontro com o IB Kamara?
Foi incrível, nos conhecemos em Belém através do fotógrafo Rafael Pavarotti num ensaio que eles fizeram para a i-D e para a Double Magazine.
Como você define seu trabalho?
Meu trabalho acontece no freestyle e é muito experimental também. É sobre fazer arte com o que tenho e não limitar isso a materiais. A moda é branca e colonizadora o tempo todo, o que me frustra muito. Essa foi uma forma de resistir.
F1er6e (Marcely Gomes)
Idade: 23
Onde vive: Ilha de Caratateua, também conhecida como Outeiro
Fez faculdade: Sou técnica em design pela Escola Técnica Estadual em Icoaraci.
Você trabalha nessa área?
Eu fiz o curso e não consegui nada na área, mas ele me fez descobrir um pouco da arte em mim. Fiz então um outro curso, desta vez um administrativo no Senai e consegui emprego numa fábrica de sabão em Icoaraci, trabalhei no almoxarifado por um ano e três meses.
Onde você conheceu Labo e Jean?
No ensino médio. Íamos pra casa do Labo e ficávamos batendo fotos, fazendo um monte de coisas, mas tudo muito natural. Daí fomos conhecendo as pessoas de Belem e encontrando um grupo muito artístico. Akhacio, Jean e eu começamos a fazer uma festa com um nome que é uma brincadeira com o nome da nossa ilha, Caratateua. Como a gente é fogo na roupa, demos o nome de Enkaralhateua (risos). Temos que fazer uma coisa pra chamar atenção e fizemos um curta pra promover a festa, que teve muita visualização que a gente não imaginava.
O que você faz agora?
Estudo cenografia e tenho um brechó, o Yebá, que também é o nome do nosso coletivo. Ganho meu dinheiro com o brechó. Para os índios dessana, Yebá representa Deus.
Como você faz a seleção de peças que vão para o seu brechó?
Vou em brechós de bairro que são mais baratos. Meu público é voltado pro centro de Belem, então fazemos delivery das peças que eles compram. Delivery de ônibus mesmo (risos). O Akhacio pinta algumas roupas, a gente se vira. Eu também desenho, sou modelo…
O que você acha dessa cena que vocês estão fomentando aí?
Acho que a gente vem fazendo uma transformação, sabe? É um movimento muito natural que nasceu entre amigos e a gente sempre se ajuda. Temos uma união sincera, sem um querer ser melhor do que o outro. O movimento artístico aqui não é novo, mas para mim, que venho da periferia, é. Eu tive menos acesso a tudo que veio antes, por isso que para mim é algo muito novo. E queremos que outras pessoas se inspirem nesse movimento e que ele cresça aqui e depois nas outras Amazônias. O Pará é só uma ponta.
Como morar aí influencia no seu trabalho?
Eu me orgulho muito por me descobrir artista aqui na Amazônia. É uma arte-vivência. A gente se baseia na nossa vivência e minhas referências são o que vejo no dia a dia, como moradora de uma ilha no meio da Amazônia.
E o que você vê no seu dia a dia?
Moro num lugar rodeado de natureza e perto da praia. Moro num lugar que é urbanizado em relação a outras regiões aqui, mas ainda é rural. É a mais próxima de Belém, cerca de uma hora e meia, mas minha rua é de piçarra. Não é muito desenvolvido aqui ainda. Por isso é que gosto de puxar as coisas pra cá. É um lugar muito bonito, uma ilha periférica. Tudo isso influencia meus desenhos e minhas fotos.
Qual seu sonho?
Ter um reconhecimento, viver da minha arte e ensinar. Tenho muito interesse por educação. Sonho em ser diretora de cinema. Sabe, eu não me limito a uma coisa só. Meus amigos dizem: “tu é muita onda, mana”.
Jean Petra
Idade: 24
Onde vive: Nasci em Belém e acabo de me mudar para São Paulo.
Por que você se mudou para São Paulo?
Vim pra trabalhar, pelas oportunidades de emprego. O mercado em Belém não é muito grande e as dificuldades são muito grandes.
É formado? Sim, em Design de Interiores.
Chegou a trabalhar com isso (ou ainda pretende)?
Meu objetivo era ser arquiteto e curso de design era um caminho. Depois descobri que não era o que eu queria, mas foi como descobri a criatividade. deixei de ser um admirador de arte e passei a fazer arte.
O que você faz de trabalho?
Trabalho com os amigos, com o coletivo Yeba. Viver de arte no Brasil não é fácil e dentro do coletivo criamos um brechó virtual e eu me mantenho com o dinheiro do brechó. E também tô trabalhando de freelancer em eventos como DJ.
Como funciona o coletivo?
Somos cinco pessoas e nos dividimos. Às vezes estamos fotografando e um de nós é o modelo e vice-versa. Criamos o coletivo com a intenção de colocar nossas habilidades em prática.
O que você toca?
Gosto de tocar musicas regionais, lambada, soca, zouk, tecnobrega, músicas divertidas.
Como é o lugar que você vive?
Nasceu em Icoaraci, litoral de Belém, com praças, árvores, praia, orla. É um lugar pelo qual tenho muita afetividade. Lá conheci muitos artistas independentes que estão no corre das artes. Agora estou morando em Campo Limpo, São Paulo, com uma amiga que é de Belém. Tô nessa dualidade de lugares…
Como você descreve o que você faz?
Acredito que ainda estou no caminho de descobrir. Faço foto-performance surrealista. Trabalhamos muito juntos com os amigos, fazemos muitas produções audiovisuais, videos… Faço também trabalhos como ator e modelo.
Como você descreve essa cena que você e seus amigos estão ajudando a fomentar no Pará?
Nós nos formamos juntos e não só como profissionais, mas nos moldamos como pessoas e artistas juntos. Artistas nortistas da Amazônia. E acredito que a cena tem muito a ver com a identidade do Norte mesmo. É regional. Cada um de nós tem sua identidade, mas falamos, no fundo, sobre a nossa regionalidade, as nossas vivências, o amor pelo nosso local e críticas também sobre tudo isso. Arte não é so beleza, temos que apertar o dedo na ferida.
Akhacio (Felipe acacio moreira)
Idade: 26
Onde vive: nasci e fui criado em Capanema, uma cidadezinha no interior a cinco horas de Belém, onde moro hoje.
O que você faz?
Tudo o que envolve arte visual: ilustração, pintura, fotografia. Pintura é o que mais faço porque foi a forma de me expressar que aprendi desde muito novo pois minha mãe é artesã e meu pai também pinta. Pinto em madeira, materiais que encontro na rua, no lixo, às vezes quando não tenho material de pintura, faço tinta natural usando açaí, argilas… Mas como aqui no Pará é muito difícil de vender uma obra de arte original, acabo comercializando prints, adesivos, posters, pra ver se as pessoas compram.
Você consegue viver do seu trabalho artístico?
Quando conheci essa galera, criamos o coletivo Yeba e comecei a aplicar a minha arte em moda. Tenho esse cuidado de procurar peças ou mandar fazer. Meus amigos costuram e eu faço minha arte à mão. Hoje em dia é como ganho uma renda, mas já trabalhei com tudo nessa vida.
O que você já fez?
Já trampei como garçom, ajudante de cozinha, escritório de arquitetura, vendas, tocando na noite, produzindo festas, teatro, atuando, modelo, já tive por um tempo até um motel kkkkk. Já vendi meus quadros na rua (ainda faço às vezes), vendi comida em praia, fui ajudante em barco pra gente que vende açaí…
E você agora faz o que em Belém?
Estou estudando arquitetura e faço um frila num balneário como garçom quando a coisa aperta. Também toco em festas e criei uma festa de reggae chamada regay pra mudar um pouco essa cena que também é muito machista.
Como você enxerga essa cena que vocês estão fomentando aí?
Cada um de nós tem um trabalho individual forte, falamos muito sobre o lugar que a gente vive, que é a Amazônia. E a Amazônia não é um lugar romântico, então existe muita política no nosso trabalho. Foi quando a gente se juntou e fortaleceu essa amizade, que percebemos o quanto importante é a gente reafirmar e resistir a todos os processos que estão acontecendo no Brasil e na Amazônia.
E vocês devem estar inspirando muita gente.
Sim, nós vivemos num lugar com uma cultura muito forte, mas somos do interior, da periferia e não estamos na panelinha artística. Se não fosse nosso pensamento de coletividade, onde um vai puxando o outro… Estamos criando uma rede que não é só pra mim, mas pra todos. Nós não vamos largar a mão de ninguém porque sabemos o quanto é difícil e o quanto precisamos disso.
Por muito tempo o que víamos eram pessoas fazendo arte sempre nos excluirem. Sempre tiveram como referência o sul, o sudeste, os EUA, Europa. Nós não nos prendemos a isso. Valorizamos e construimos com um pensamento regionalista. A gente virou essa referência pra pessoas daqui, usando a tecnologia do possível. Tipo, não tem grana pra comprar material, pra montar o look, é só a gente dar uma volta na rua que encontramos coisas legais até no lixo. Isso dá uma autonomia pra gente e pra outras pessoas. Isso pra mim é inovador. A gente realmente consegue tirar um conteúdo forte, te juro, do nada! Só Oxum mesmo na causa. É uma resistência enquanto nortista, enquanto amazônida.
Me fala sobre sua passagem por São Paulo.
Em 2015 tive que trancar a faculdade. Coloquei uma mochila nas costas e fui embora pro Nordeste. Viajei muito, trabalhei muito, cheguei no Rio e depois em SP, onde fiquei por oito meses e conheci uma galera. Abrimos um coletivo artístico, fazíamos umas festas paraenses, acabei conhecendo umas pessoas no Teatro Oficina e fiquei trabalhando lá. O Oficina foi muito importante e São Paulo também para eu profissionalizar vários processos do meu trabalho.
Um sonho?
Meu maior sonho é ensinar crianças porque a arte me salvou e salva meus amigos. E como é muito verdadeiro da nossa parte, as pessoas se sentem tocadas.
NOWNESS – A Queda do Céu – Aquilo que os Jovens Chamam de Música II / The Falling Sky – What Young People Call Music II from Fernando Nogari on Vimeo.