A edição SPFW N48 entra para a história, não apenas do próprio evento, mas da moda brasileira. A diversidade esteve presente de forma nunca vista antes e, através dessa mudança estrutural que chega após uma longa jornada, os desfiles foram banhados por afeto, outra palavra que norteou, sem querer, a semana de moda.
Antes, quando falava-se em diversidade na moda, era para chamar atenção para a falta de modelos negros na passarela (campanhas, ensaios, etc). Foi sim uma longa jornada para o casting negro até que, na temporada passada, uma modelo negra, Amira, foi a recordista de desfiles. Nesta edição, as cinco primeiras modelos que mais desfilaram são afrodescendentes (Nayara Oliveira, Mari Calazan, Isadora Oliveira, Elle Maciel e Raynara Negrine).
Porém, um outro padrão foi derrubado no que diz respeito à passarela. Esta também foi a edição com maior representatividade de pessoas que não são modelos-padrão desfilando para muitas marcas. Homens, mulheres, trans, jovens, mais velhos, pretos, brancos, orientais, magros, gordos, corpos distintos e orgulhosos. O público se viu ali e essa sensação de aceitação e positividade foi vista claramente nas redes sociais. O post mais curtido da semana na página do FFW no Instagram foi o da apresentação da Free Free, que teve no casting uma cadeirante, uma ativista indígena e uma menina gorda, entre outras inúmeras representações da mulher.
Marcas como Isaac Silva, Cavalera, Angela Brito, Amapô, Fernanda Yamamoto, João Pimenta, ÀO e Korshi 01 estão entre as que apostaram em um casting verdadeiramente diverso e representativo. E neste sentido, essa edição é um marco. O que antes era exceção, agora virou regra. E não tem como voltar atrás. Para o público, essa representatividade na passarela é uma forma de conexão com a marca. Se você não se reconhece ali, então aquela marca não é pra você.
A estreia de Isaac Silva levou isso ao extremo. O que vimos ali nunca aconteceu antes nem no SPFW nem em outras das capitais da moda, certamente. O público estava tomado já antes do desfile, totalmente conectado com Isaac de maneira que, quando a primeira dupla entrou na passarela, a plateia respondeu com muitos berros e aplausos. E assim foi do primeiro ao último look tendo como pico a entrada do próprio Isaac para agradecer no final. Lá, naquele instante, tudo o que rodeava ele era uma energia de puro amor. E para o público, maioria composta por amigos do estilista, como cantores, escritores, artistas e influenciadores negros, parecia que a conquista do Isaac era também a conquista de todos ali.
A maioria negra também estava no backstage de Isaac. ”Quando o SPFW me convidou, pensei sobre o que eu estar aqui pode representar para outras pessoas. E, se estou aqui, tenho que trazer outros comigo. Modelos e outros profissionais talentosos que, por causa deste sistema da moda, nunca trabalharam num SPFW”, disse antes do desfile.
O mesmo fez Angela Brito, em sua bela estreia, com casting 100% negro e profissionais de backstage idem, com uma ou outra exceção. Natural de Cabo Verde, Angela trouxe de seu país a tradição em alfaiataria como uma maneira de falar da África. À isso, ela inseriu estampas florais pintadas à mão por Marcos Florentino, da dupla de fotógrafos MAR-VIN, fotografadas e depois digitalizadas, resultando em uma das coleções mais bonitas de toda a semana. As flores também aparecem na beleza, inspiradas por imagens de uma tribo africana na região do Vale do Omo, que usa pétalas como forma de adornar o rosto e o cabelo.
A Cavalera levantou o público com um desfile de discurso forte. A marca convidou a dupla de diretores criativos e stylists Emerson Timba e Léo Bronks para assinar a coleção intitulada Skate, Punk, Jamaica no País do Futebol. “Hoje mostramos que não somos a carne mais barata do mercado. Respeitem a gente”, disse Léo Bronks em conversa com o FFW.
Seu Jorge foi convidado para abrir o desfile narrando as estatísticas de mortes de negros por armas de fogo no Brasil. Um grupo de dançarinos entrou dançando e sentou na passarela, formando o corredor por onde o casting feito por 80% de modelos negros desfilou a coleção de streetwear com estampas vindas do punk, da cultura do skate e da Jamaica. E quem encerra é Sam Porto – primeiro modelo homem trans a desfilar no SPFW e um dos rostos mais marcantes desta temporada – de peito aberto com a frase escrita em seu corpo: Respeito Trans.
Fernanda Yamamoto também fala de diversidade e política, mas à sua maneira, através da poesia e delicadeza. Na celebração de seus 10 anos de ateliê, ela fez uma coleção inteira em upcycling, optando por transformar peças antigas que marcaram sua carreira em vez de criar roupas do zero. O casting misturava modelos com clientes da marca, vendedoras de sua loja, amigas, meninos vestidos com roupas femininas, sem levar em conta idade, gênero ou tipo físico. E a trilha foi o famoso tapa com luva de pelica, feita ao vivo por Chico César, acompanhado de um coral, cantando faixas do seu novo álbum como O Amor é um Ato Revolucionário. Chico é um artista que usa sua voz para se posicionar politicamente e defender a democracia e os direitos do povo. Em uma entrevista recente à Folha, ele diz: “os negros não aceitam voltar para a senzala, as mulheres não aceitam a voltar para a cozinha, os gays não aceitam voltar para o armário”. Portanto, do casting à trilha, Fernanda passou seu recado, encerrando o show acompanhada por toda sua equipe.
Marcas como Amapô e João Pimenta também apostaram num casting diverso para dar corpo às suas criações e ajudar a contar suas histórias na passarela. No caso de João, que trabalha principalmente o mercado masculino, o estilista olhou para o universo masculino para vestir mulheres que não se identificam com o padrão de feminilidade. Ele se inspirou então no universo das mulheres lésbicas a partir de uma troca com um grupo de garotas para que elas contassem um pouco de seus desejos e necessidades de moda. Assim, essa é uma coleção sem gênero, já que tanto homens quanto mulheres, podem se enxergar lá. “Ironicamente foi também a maneira que eu encontrei de fazer uma coleção descomplicada e mais limpa para o público masculino”, diz João.
Ao, Lucas Leão, Korshi, Victor Hugo Mattos e Aluf do Projeto Estufa / Agência fotosite
Os desfiles do Projeto Estufa são um caso à parte, onde questões de gênero, raça e corpo já se encontram em um lugar onde simplesmente deixam de ser questões. Os jovens designers que compõem o projeto refletem em suas roupas e passarelas o que vêem e vivem em seu entorno – que certamente não é a realidade paralela e idealizada que a moda sempre propagou.
Por essas razões que essa semana fica marcada como um forte ponto de mudança em direção a quebra de alguns padrões. Menino trans com roupa de menino e salto alto; menino com roupa de menina, menina com roupa de menino. Vale destacar novamente Sam Porto, que rendeu uma das imagens mais fortes da temporada no desfile da Korshi 01, ao desfilar sem camisa, mostrando as marcas de sua cirurgia de retirada de mama. Lux Tenório também tem uma imagem bem interessante, um encontro entre a corte de Versalhes com Robert Plant jovem, sem a gente saber necessariamente se é um menino ou uma menina. Mas o que isso importa?
Por mais que para muitos essas mudanças ainda sejam simbólicas, é fato que a moda está passando por um despertar. Como cantou Chico César no desfile de Fernanda Yamamoto, “brancos, pretos, índios, tanto faz. Eu não tô lhe ofendendo, só tô existindo aqui, nem tô me defendendo pra mim e pra ti. Sapas, bichas, gays, pessoas trans, transparentes, pais, irmãos, irmãs”.