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    Cami Talks: nova coluna estreia com conversa com Julia Vidal

    Designer gráfica acaba de abrir uma escola pluricultural com cursos sobre apropriação cultural e maratona antirracista

    Cami Talks: nova coluna estreia com conversa com Julia Vidal

    Designer gráfica acaba de abrir uma escola pluricultural com cursos sobre apropriação cultural e maratona antirracista

    POR Camila Yahn

    Bem vindes a minha nova coluna semanal no FFW, um espaço para conversas, entrevistas, reflexões, novas ideias e textos livres de assuntos ligados ao comportamento e cultura de moda.

    Para a estreia, convidei a designer Julia Vidal* pra compartilhar sua visão de mundo com a gente nesse espaço. Eu a conheci há alguns anos em uma entrevista pro canal do SPFW no Youtube e me encantei pra sempre pelo seu conhecimento sobre as culturas indígenas e afrobrasileiras e como elas se conectam com a moda. Leia a entrevista que fiz com ela abaixo e você vai entender o por que.

    Em seu perfil no Instagram e na programação de seus cursos, você fala muito sobre uma história que a moda nunca contou. O que é fundamental que todos fiquem sabendo?

    Acho importante a gente reconhecer a complexidade de criação, de produção e de estética no Brasil. Entender que hoje são 305 povos indígenas (já foram mais de 900) e que cada um desses povos tem uma forma de representação, um conjunto iconográfico, teceres em materiais diversos e totalmente conectados ao território, além de uma série de coberturas e representações e tecnologias ancestrais que são autênticas e de enorme diversidade.

    Junto a isso, há uma quantidade de etnias que chegam da África ao Brasil, trazendo um trabalho muito grande em termos de tecidos e tingimentos e uma relação com a produção de alfaiataria de muito conhecimento. É entender que a moda brasileira é tudo isso.

    Por isso eu trago essa questão da pluriculturalidade pra moda para que a gente compreenda isso como uma possibilidade de enriquecimento que se contrapõe a esse processo colonial que ainda encontramos na moda brasileira: de um único discurso, de um único corpo e um padrão de beleza, de uma moda que se faz a partir de um olhar externo. É isso que a moda precisa entender: toda a complexidade que temos aqui e criar valor, dar valor ao que é nosso. As nossas tecnologias, o nosso repertório gráfico, a nossa biodiversidade enquanto material natural pra gente desenvolver e inovar a partir da nossa fauna e da nossa flora de uma forma que seja sustentável. É essa necessidade de uma reconexão com o nosso próprio território e com a nossa própria gente.

    Temos visto mudanças acontecendo, um caminho para uma indústria mais plural e diversa. Como você percebe isso? Acha que há uma mudança de estrutura de fato?

    Vejo mudanças em vários âmbitos. Na indústria, no varejo, na educação, nas semanas de moda. De fato elas estão impactando toda a nossa cadeia. Ainda não acredito nas mudanças em relação às condições de trabalho, neste sentido temos um caminho ainda mais longo a seguir. Porém sempre tenho dúvidas sobre quanto tempo as coisas vão durar. O quanto o discurso de sustentabilidade está vigente e quanto temos dificuldade que esse discurso se torna uma prática.

    Tenho dúvidas em relação a esses ciclos da moda, a incapacidade de mudar as nossas bases e arrancar o mal pela raiz. Esse mercado também tem a capacidade de se atualizar com novas palavras e ficar numa eterna busca sem de fato assumir os compromissos e fazer mudança. Essa mudança tem a ver com uma questão de consciência e de luta social por parte dos consumidores que começam a pressionar as marcas, dos alunos que começam a pressionar suas instituições. Acredito que estamos num caminho muito melhor do que antes, que existem grandes despertares e eu sou positiva e torço para que não seja apenas uma marola e que essa mudança tenha chegado pra ficar, para ser uma oportunidade para nos modificar enquanto pessoas e enquanto sistema.

    Como fazer esses assuntos estourarem a bolha para atingir e conscientizar mais gente?

    Acredito que é um caminho de conscientização das pessoas. Quando comecei a fazer moda, a minha preocupação era essa educação ao consumidor e acredito que é ele quem vem gerando essa pressão porque esse mercado funciona a partir de pressão econômica. Quando existem decisões econômicas de uma base grande de clientes que impactam o mercado de forma a gerar um deficit pra empresas, elas tem que mudar. Também podemos vir com legislações, certificações e multas, mas ainda acredito que é mais eficaz esse movimento da voz das pessoas. Quanto mais movimentos tivermos no sentido de educação e conscientização para pressionar por mudança, quanto mais acessos a esses espaços de conhecimento, de tomada de decisão, a essa grande máquina da indústria, mais mudanças e chances de furar essa bolha. A elite está criando e produzindo pra si, mas moda se faz com a massa. Então quando ela não consegue mais dialogar, tem que ir pra onde a massa se posiciona, e começa a ter que abrir espaço pra essa escuta e pra esse diálogo.

    Fora isso, acredito na inventividade. Tanto o negro quanto o indígena tem uma forma muito autêntica e muito bela e uma capacidade de se reinventar enorme que torna tudo atraente e forte esteticamente. Então, em algum momento, existe também esse despertar, de que além da beleza tem toda essa intelectualidade, todo esse conhecimento. Um diálogo se faz possível quando se reconhece a capacidade do outro. Isso toca num lugar que é o furar a bolha de uma vez por todas, que é o olhar colonial.

    O decolonial vem dessa ideia de entender todos os problemas da colonialidade ainda em curso e partir para uma ação de mudança… Porque a moda tá toda embasada nesse sistema, que só reforça todos os problemas que temos em nossa cadeia.

     Acredito na capacidade de recriação de um cenário a partir dessa tomada de consciência que tem a ver com a descolonização e essa revisão em relação ao sistema capitalista. Porque a moda tá toda embasada nesse sistema, que só reforça todos os problemas que temos em nossa cadeia. É uma grande entrave pra nós avançarmos.

    Você acaba de abrir uma escola pluricultural, a Ewa Poranga, que aborda todos esses pontos. Conta um pouco como ela funciona?

    É uma escola de ensino livre e pluricultural, que faz uma costura de saberes de povos ameríndios, africanos e asiáticos. Nós estamos trabalhando com a perspectiva a partir desses mundos diversos em uma produção de uma moda pluricultural em diálogo com o Brasil. É um lugar de transformar sua forma de ser, de fazer moda brasileira e enriquecer pessoas a partir da convivência entre as diferenças. Nossa comunidade é composta por sementes, que são nossos alunos, e o objetivo é criar ecossistemas de inovação e impacto sócio ambiental. Tudo é conduzido sob a perspectiva de metodologias de universidades indígenas que trazem essas soluções pra nossa sociedade. É um ensino mais amplo de consciência, de uma moda anti racista e libertadora. A escola opera com algumas possibilidades, como cursos, imersões e vivências e as pessoas podem fazer parte enquanto alunos ou enquanto apoiadores, possibilitando que gente tenha bolsas para pessoas que não possam acessar esse ensino pago.

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    Quantos cursos vocês têm disponíveis agora?

    Estamos com quatro cursos no momento: Criação de Estamparia Étnica; Apropriação Cultural: Como Não Cometer; Maratona Antirracista e A História que a Moda não Conta.

    Estamos falando da construção de beleza e de uma dimensão de beleza que não é a que conhecemos na concepção ocidental euro centrada. É uma beleza holística, integrativa, que se relaciona com pessoas, com ancestralidade e com o sagrado.

    Como é o seu quadro de professores? Quem mais dá aula além de você?

    Temos diversas curadorias. Nas temáticas indígenas, temos:

    Julia Xavante (Universidade Plurietnica Aldeia Marakanà)

    Dilmar Puri, educador Ewa Poranga (Universidade Indigena Pluriétnica Aldeia Marakanà)
    Papion Cristiane, educadora Ewa Poranga (Observatório Cultural das Aldeias)
    Kaká Portilho, educadora Ewa Poranga (Estudos afro centrados do Instituto Hoju/ Univerkizazi)
    Daise Rosas, facilitadora e educadora Ewa Poranga (REAFRO e Câmara de comércio África Brasil)
    Luiza Tamashiro, educadora Ewa Poranga (Estudos Asiáticos e acessibilidade do Relab Criativo)

    Nas temáticas afro centradas:

    Kaka Portilho
    Daise Rosas Educadora e facilitadora da Ewa Poranga. (REAFRO, SOMA, Afreaka Brasil Fashion Bussiness, Câmara de Comércio Africa Brasil)

    Nas temáticas asiáticas e de acessibilidade:
    Luiza Tamashiro, educadora Ewa Poranga (Relab Criativo)
    Daise Rosas, educadora e facilitadora Ewa Poranga. (REAFRO)

    Uma das vivências da aula de Julia Vidal / Foto: Iere Ferreira

    Uma das vivências da aula de Julia Vidal / Foto: Iere Ferreira

    E o seu encontro com a moda foi por acaso, mas que bom que ele aconteceu! Pode contar como você entrou na moda?

    A moda sempre foi um lugar onde me sentia muito distante pois não me via representada nela. Estava terminando a faculdade de design gráfico na UFRJ e quis fazer um trabalho relacionado à minha identidade. Sempre me preocupei que meu trabalho pudesse contribuir pra minha sociedade. Faço um design de conexão de pessoas com suas próprias histórias. Fiz um estudo de icnografia de símbolos das etnias que vieram da África pro Brasil porque achava que isso poderia ser apropriado pela moda sem que essas histórias fossem conhecidas. Então disponibilizava esse repertório enquanto tipografia para que as pessoas pudessem usar sabendo o significado delas. 1o anos mais tarde, ele se tornou o meu livro: O Africano que Existe em Nós, Brasileiros.

    Quando lancei esse trabalho em 2004, falava da possibilidade da estamparia usar esses elementos e que isso poderia ser um material de pesquisa para industria têxtil. Não imaginei que teria uma relação com a moda. Só que quando as pessoas viram esse material, elas começaram a pedir as roupas. E foi assim que nasceu a minha marca Balaco Roupas Afro Brasileiras (hoje Julia Vidal: Etnias Culturais), que trazia esse repertório iconográfico nas estampas. E logo tive convite para expor num grande evento, Rio Luanda, e nesse momento recebi muitas encomendas. Pedi demissão da agência de publicidade onde trabalhava e fui me dedicar a essa marca de roupas. A roupa, pra mim, veio como uma possibilidade de transformação e como plataforma de comunicação. Foi assim que eu entrei no campo afetivo de fazer roupas para amigos, para clientes, para noivos e noivas, para artistas, potencializando cada pessoa e projeto artístico de forma a valorizar a diversidade cultural brasileira.

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    * Julia Vidal é designer gráfica, de estamparia, graduada em História da África no Brasil e mestre em Relações Étnico Raciais, além de fazer parte da Universidade Pluriétnica da Aldeia Marakanà. Tem três livros publicados: O Africano que Existe em Nós Brasileiros: Moda e Design Afro Brasileiro; Quintal Étnico e Cosmovisões x Moda, Qual é a Sua Tendência: Contribuições e Proposições para uma Moda Étnica e Ética (este último fruto de alguns debates que envolveram lideranças de sete povos indígenas em parceria com o Observatório de Histórias, Culturas e Literaturas Indígenas. 

    www.juliavidal.com.br + ewa poranga

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